Coisas da paixão
 

Um dia, não mais que de repente, quando estava com o coração em repouso dos rebuliços do quotidiano e a alma em férias,
ela esbarrou  em alguém .
 Um episódio banal que acontece todos os dias,  em qualquer lugar do mundo, a toda hora; talvez num saguão de hotel,
nestes vastos horizontes de meu Deus...
Ele, com seu jeito manso, a espreitou por muitos dias,
 sorrindo como se a  entendesse e como se soubesse o que ela queria lhe dizer,

sem nunca ter lhe falado.
Naquela  noite ligou para o seu apartamento, no mesmo hotel em que estava hospedado, e cujo número descobrira a
às custas de uns dólares na portaria.
Foi uma conversa interminável pelo telefone e um só passeio no dia seguinte, burlando a vigilância que havia  sobre ela, ainda meio comprometida com um casamento mal terminado.
Ela se deliciou   só de imaginar aquela tarde, passeando pelo cais da cidade, de mãos dadas com aquele homem que talvez
devesse ser um estranho,
como se já houvessem sido criados assim,
unidos como siameses.
Fitavam  os mesmos horizontes, gostavam das mesmas coisas e até naquelas  em que o gosto divergia,  pareciam iguais, tal a cumplicidade que se estabelecera entre eles.
As coincidências e desacertos os uniram, como unem todos os apaixonados...  só podia ser algo superior que os empurrava um para o outro, juntando-os tão longe de casa, quando moravam  a menos de uma esquina do outro, no seu país de origem - que era o mesmo , por sinal.
Na época, os dois ainda resolviam impasses de suas vidas e
não puderam se  ver de imediato...
Não se sabe  se por obra da química ou das trapaças  do destino, começaram a se  cativar lentamente
depois daquele primeiro e único encontro,
como num ensaio para a grande performance.
Ele dava passos, ela o acompanhava... o interesse crescia, a sincronia se fazia, e eles dançavam afinados, como guiados por um fio delicado, mas ao mesmo tempo forte,
como os das teias de aranha.
O que desencadeara aquele sentimento? os mistério dele, a indisponibilidade dela,  
a  carência de ambos?

Ninguém sabe... só  se teve notícias de que se apaixonaram,
perdida e irremediavelmente.
E  daí por diante, para onde ela olhava só via  o rosto dele...
se sonhava, era com ele; nas ruas por onde passavam,
todos se pareciam com a única figura que ambos tinham  na  retina:
a imagem do outro.
 Nos confins  do mundo, no meio de milhares de asiáticos, de índios, ou de árabes, havia mil pessoas com o mesmo rosto...o do amado, os fitando.
De madrugada, insones, olhando a televisão, de dentro da tela ele saltava e vinha para o  lado dela, como num filme de Woody Allen 
que todos  gostariam de ter protagonizado.

Podiam sentir suas mãos...podiam olhar  suas  alma
através dos olhos do parceiro, como num espelho.
Podiam  sentir seus cheiros,
desfrutar dos beijos intermináveis um do outro...
podiam se amar, como nunca tivessem amado mais ninguém na vida. Aliás, não estavam  nesta vida...participavam de um momento  só deles, em um mundo diferente e perdido, uma “Atlântida” que um dia sumiria, 
mas que  eles procurariam preservar  enquanto pudessem.

 E o que era isto, senão obra da  paixão?
Algo que transcendia a vontade, ao  poder de concentração de cada um, sua  integridade ou  sanidade...
algo que ultrapassava seus limites,
sua razão e sua  essência.
Era ele,   no que ela comia; era ela,
na água em que ele bebia.
Um pensava no outro, só viviam os dois.
Chegaram a imaginar  que estavam loucos...
pegavam-se fitando outras bocas com paixão,
pensando na do  ser amado.
Só ela seria capaz de sacrifícios por ele; ninguém mais.
Só ele  seria capaz de acordar com a escuridão ainda,
para escrever poesias que falavam dela e  para ela,
de coisas sem nexo, desconvexas, insólitas...
coisas que falavam dos dois e do seu côncavo aconchego,
quando se imaginavam abraçados, debaixo de um céu estrelado qualquer, 
contanto que iluminado pela via láctea,

ou por alguma estrela que se perdera,
só para contemplar o seu amor.
Lembravam-se de cada palavra  dita ao pé do ouvido.
De segredos  que nunca fariam nenhum sentido
para quem os ouvisse, a não ser para  os dois.
A paixão é assim; sem meio termo, sem início, sem final,
sem explicação plausível.
Sob a sua égide, nada funciona normalmente; nada .
Estavam acometidos de uma febre que não matava,
mas que os acendia por dentro, que lhes  dava vitalidade
e forças para sobreviver a tudo.
Quantas pessoas os encontraram naquela época
e lhes disseram que estava resplandecentes
 e mais bonitos...
Ele se sentia poderoso e inseguro ao mesmo tempo,
com medo de que,  a cada volta do ponteiro,
fosse acordar daquele estado de euforia ...
ela também, para não fugir ao estado de alma gêmea,
sentia os mesmos sobressaltos.
Queriam mais um do outro: beber palavras, se fundirem  
como se fossem feitos de um só material,  
talhados pelo mesmo artesão, costurados pelo mesmo alfaiate.

Em suas  cabeça eram unos e indivisíveis;
um todo sem fragmentos...
A eles já não  importava quanto tempo iria durar,
nem o que iria custar.
Eram felizes e sabiam...
até quando?  só o destino poderia dizer.

Afinal, na paixão,o que importa é o momento ...
nada mais!

Texto e Design by Maria Eugênia (Doce Deleite)
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